sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pode alguém salvar-se fora da igreja?



 RAPHAEL DE LA TRINITÉ



A Igreja tem como dogma que fora dela não há salvação (IV Concílio de Latrão). Isso não significa que um índio, vivendo no Brasil, antes da chegada dos portugueses, não conseguisse salvar-se. Obviamente, tal índio não poderia de modo algum conhecer a Igreja. Como, então, se salvaria?
A resposta é fornecida por São Paulo, ao afirmar: aqueles que não conheceram a revelação de Cristo serão julgados pela lei natural, que Deus imprimiu no coração de cada homem.
Esse índio, impossibilitado absolutamente de conhecer a Igreja, achava-se em estado de ignorância invencível. Tinha, porém, conhecimento das leis naturais que governam a natureza, e a lei natural é a própria vontade de Deus enquanto governa todas as coisas. Portanto, desde que esse índio obedecesse às leis naturais — que estão codificadas nos Dez Mandamentos —, poderia salvar-se. Pertenceria, neste caso, não ao corpo da Igreja (que ele não conhecia), mas sim à alma da Igreja, graças à sua boa disposição de obedecer à lei que Deus colocou na natureza.
Diverso será o caso de alguém que siga uma religião falsa.
Se a ignorância da pessoa puder ser vencida — não se trata, pois, de ignorância “invencível”, ou seja, está ao seu alcance conhecer a religião verdadeira —, em tal caso se vê na obrigação de aderir à religião verdadeira. Contudo, em qualquer caso, supondo-se que aceite praticar algo que   uma religião falsa ordene contra a natureza, na medida em que o fizer, perder-se-á.
Falemos, por exemplo, do budismo. Este nega que exista Deus. É uma religião ateia. Há budismos que transformaram Buda num ídolo, além do que, nessa religião, a própria existência é vista como um mal. A vida é para eles um castigo. Então como poderão os budistas agradar a Deus, que é o Caminho, a Verdade e a Vida?
A Sagrada Escritura diz: "São vaidades [vaidosos, vivem de vaidades] todos os homens nos quais não se encontra a ciência de Deus, e que pelos bens visíveis não chegaram a conhecer Aquele Que É, nem considerando as suas obras reconheceram quem era o Artífice; mas tomaram por deuses governadores do mundo o fogo, o vento, o ar sutil, ou o giro das estrelas, ou a imensidade das águas, ou o sol e a lua. Se eles, encantados com a beleza de tais coisas, as julgaram deuses, reconheçam quanto é mais formoso do que elas o que é seu Senhor; porque foi o autor da formosura que criou todas estas coisas. Ou se eles se maravilharam do seu poder e das suas influências, entendam por elas, que Aquele que as fez é mais forte do que elas; porque pela grandeza e formosura da criatura, se pode visivelmente chegar ao conhecimento do Criador. Todavia esses homens são menos repreensíveis, porque, se caem no erro, é talvez buscando a Deus e desejando encontrá-lo. Porquanto eles buscam pelo exame das suas obras, e são seduzidos pela beleza das coisas que veem. Mas, por outra parte, nem estes merecem perdão, porque se chegaram a ter luz bastante para poderem fazer uma ideia do universo, como não descobriram mais facilmente o Senhor dele?" (Sab. XIII, 1-9).
O caso dos espíritas e dos maometanos é ainda mais complexo.
Os espíritas investem diretamente contra o que foi revelado na Bíblia que diz: "Não haja entre vós... quem indague dos mortos a verdade" (Deut. XVIII, 11). Aliás, a Bíblia em muitas outras passagens condena a necromancia (consulta aos mortos).
Quanto aos maometanos, bastaria que lessem o próprio Corão, para que lhes fosse dado compreender que o livro pelo qual eles deveriam guiar-se não é o Corão, pois, no próprio Corão, se acha dito: "Demos o Livro a Moisés. (Não tenha dúvida de o encontrares), pois o colocamos como uma boa direção para os Filhos de Israel" (Surata XXXII, 30). "Demos o Livro a Moisés" (Sur. XXVIII, 43). "Certamente, nós demos boa direção a Moisés, e demos o Livro em herança aos Filhos de Israel" (Sur. XL. 56-53). "Demos o Livro a Moisés, colocamos junto a ele a seu irmão Aarão como ministro" (Sur. XXV, 37). Indo além, o Corão diz: quando Maomé tiver dúvida sobre o Livro, que consulte os mestres de Israel, isto é, os rabinos: "Se tens dúvida sobre aquilo que fizemos descer até ti, interroga aqueles que antes de ti liam o Livro" (Sur. X, 94).
Em suma, ninguém deve esperar obter a salvação  praticando o que uma religião falsa ensina, ou manda fazer,  de errado, ou de contrário à lei natural.
Cabe recordar outro ponto: só Deus sabe quem, em concreto, se salva. Nesse sentido, Deus, onipotente e infinitamente misericordioso, pode salvar uma pessoa por meios que não conhecemos.
Devemos sempre espera na misericórdia divina. Contudo, a todos compete seguir a única Igreja verdadeira, que é Igreja Católica, aceitando o único Salvador, que é Cristo Jesus, único nome pelo qual o homem pode ser salvo. Sem a prática dos Mandamentos, é impossível agradar a Deus.

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O sofisma protestante

O caminho da salvação é estreito e difícil, ao contrário do que apregoam os ‘progressistas’, para os quais quase todo mundo estaria salvo, pelo simples fato de que Nosso Senhor morreu na Cruz para a nossa salvação. Assim se resume a doutrina protestante: ‘Só a fé (portanto, sem as obras) salva’. Algo inteiramente falso.
Nosso Senhor morreu para que todos se salvassem, mas se faz mister que cada qual aceite os frutos da Redenção. — Como? Pertencendo à Igreja, que Ele mesmo criou, e sendo verdadeiro católico, ou seja, acreditando em tudo que nos foi revelado por Deus é ensinado pela Igreja e praticamente fielmente os Mandamentos,

Lutero, fundador do protestantismo, declarou que nada nos aproveita “crer que em Jesus Cristo há duas naturezas, a de Deus e a de homem”, ou seja, que “Ele é o Filho de Deus feito Homem”.  “O que me importa, disse, é crer que ele é meu Salvador pessoal”. Esta doutrina errônea é o fundamento da fé fiducial e subjetiva protestante (fé-sentimento de confiança). Isto equivale a crer que o ato de fé prescinde do objeto da fé, ou seja, no caso presente, da verdade de que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Verdade essa que é fundamental para a salvação.

Um ato de fé assim tão erroneamente entendido não pode ser de verdadeira fé, sem a qual ninguém pode agradar a Deus (Heb.11,6), isto é, salvar-se. A fé verdadeira requer a adesão da mente a todas e cada uma das verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja de Deus, como pertencentes ao “precioso depósito” (da fé). (2 Tim 1,13-14 ) É desse modo que o ato de fé é um obséquio da razão humana elevada pela graça, e não um mero sentimento.

A principal destas verdades é o mistério da Encarnação do Filho de Deus. O ato de fé em Jesus Cristo que não atinja este mistério, é falso e nulo (meramente sentimental). Não é um obséquio racional (Rom 12,1 – versão da Vulgata), ou espiritual. Para sê-lo é preciso crer que Jesus Cristo é Deus e Homem verdadeiro ao mesmo tempo, e que, portanto, Maria Santíssima é sua verdadeira Mãe. E nós professamos essa verdade também chamando-A de Mãe de Deus. O mesmo se diga de todas as verdades a serem cridas com ato de fé divina.

Lutero, reduzindo a fé a um ato alógico (irracional, sentimental), falseou profundamente a sua verdadeira noção, rebaixando a fé ao domínio do sentimento. Portanto, a fé protestante não é suficiente para a justificação e salvação.

S. Paulo afirma que a fé é operante, ou seja, deve ser atuada ou exercitada pelas boas obras, pois diz: “A fé opera pela caridade”.(Gal. 5,6) E em outro lugar: “Diante de Deus não são justos os que ouvem a Lei, mas serão tidos por justos os que praticam a Lei.”(Rom 2,13)  Portanto, segundo a Bíblia, as boas obras são necessárias para que a fé não seja morta (Tg. 2, 26), e pois, para a salvação. De modo que é Cristo, sim, que salva, mas o homem coopera pelas suas boas obras. Daí o conhecido dito de Santo Agostinho: “Deus que te criou sem ti, não te salvará sem ti”.
Está claro, pois, que Jesus exige para a salvação, além da fé, as boas obras: “...ensinando-os a observar tudo o que vos mandei” (texto citado). E como já havia exigido para a salvação a observância dos Mandamentos – “Se queres entrar na vida eterna, observa os mandamentos” (Mt. 19,17) – a expressão “tudo o que vos mandei”, inclui as boas obras resultantes da observância dos mandamentos e dos deveres de estado. Ademais Jesus declara que virá “retribuir a cada um segundo as suas obras”. (Mt. 16,27)
O fundador do protestantismo, não conseguindo se libertar do pecado impuro, devido a sua desregrada sensualidade, declarou que a natureza humana, depois do pecado original, está irremediavelmente corrompida, e que, por isso, a graça da justificação não pode santificá-la no seu íntimo. Inventou, então, a doutrina anti-evangélica e hipócrita da justificação como algo meramente externo à alma. Uma espécie de manto da justiça de Cristo, com o qual Deus revestiria a alma daquele que crê, sem torná-la, no entanto, interiormente purificada e santificada.

Exemplifica bem essa absurda doutrina este conselho que Lutero deu, em carta, a seu amigo Melanchton: “Peca fortemente, mas crê mais fortemente e alegra-te em Cristo”. (Carta de 1 de agosto de 1521) Ora, conceber assim o efeito da graça santificante que Deus infunde na alma do pecador para justificá-lo, é subverter totalmente o Evangelho de Jesus Cristo. É supor que Ele se contenta com as aparências, quando condenou severamente a hipocrisia dos fariseus, chamando-os de sepulcros caiados (Mt. 23,25 a 28). Se aprovasse esse tipo de justificação, Jesus Cristo estaria Se contradizendo a Si mesmo. Como pensar que Deus se contente com esse tipo justificação apenas externa, inventado por Lutero?
Jesus também preveniu os Apóstolos contra a doutrina dos fariseus, declarando : "Nem todo aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus".
Vê-se, pois, que a doutrina católica e a protestante são irreconciliáveis. E só um muito mal entendido ecumenismo pôde produzir uma declaração conjunta católico-luterana, profundamente ambígua, sobre a justificação.
Jesus, por exemplo, preveniu-nos contra os maus pastores que se apresentam como ovelhas, mas são, de fato, lobos ferozes.

No Apocalipse, afirma que aborrece os nicolaítas que se apresentavam como apóstolos, e não o eram. Ao mesmo tempo, Jesus Cristo elogia os cristãos que execravam  esses nicolaítas e suas [más] obras (Apoc.II, 1-8).

Numa palavra, Nosso Senhor coloca a fé como uma das condições de salvação: "Aquele que crer, e for batizado será salvo"( Marcos, XVI, 16). E também as boas obras. Assim, ao moço rico, Jesus disse: "Se queres alcançar a vida eterna, observa os mandamentos" (Mt.XIX, 17).


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O batismo de desejo

O princípio de que ‘Fora da Igreja Não Há Salvação’ foi solenemente definido pelo menos sete vezes por papas falando da Cátedra de São Pedro.
Papa Pio IX, Quanto Conficiamur Moerore: “E aqui, amados e Veneráveis Irmãos, Nós deveríamos mencionar novamente e censurar um grave erro em que alguns católicos estão infelizmente engajados, que acreditam que homens vivendo em erro, e separados da verdadeira fé e da unidade católica, podem atingir a vida eterna. Realmente, isso é certamente totalmente contrário ao ensinamento católico. Nos é conhecido e a vocês que aqueles que laboram em ignorância invencível de nossa santíssima religião e AQUELES GUARDANDO ZELOSAMENTE A LEI NATURAL E SEUS PRECEITOS GRAVADOS NOS CORAÇÕES DE TODOS POR DEUS, E ESTANDO PRONTOS A OBEDECÊ-LO, VIVEM UMA VIDA HONESTA E JUSTA, podem, pelo PODER OPERANTE DA LUZ E GRAÇA DIVINA, atingir a vida eterna, já que Deus... tolerará por nenhum meio que alguém seja punido com o tormento eterno se não tenha culpa de deliberado pecado.”

Note-se que o Papa Pio IX está reiterando que o ignorante, desde que coopere com a graça divina, guarde a lei natural e responda ao chamado de Deus, pode pelo “poder operante da luz e graça divina” [sendo iluminado pela verdade do Evangelho] atingir a vida eterna, já que Deus certamente trará a todos os seus eleitos o conhecimento da verdade e ao interior da Igreja pelo batismo. De acordo com a específica definição da Sagrada Escritura, “luz divina” é a verdade do Evangelho de Jesus Cristo (a fé católica) que remove o ignorante da escuridão.

Veja-se, também: “Se o nosso Evangelho ainda estiver encoberto, está encoberto para aqueles que se perdem, para os incrédulos, cujas inteligências o deus deste mundo obcecou a tal ponto que não percebem a luz do Evangelho, onde resplandece a glória de Cristo, que é a imagem de Deus.” (II Cor. 4, 3-4).

Assim, em Quanto Conficiamur Moerore, Pio IX afirma que a pessoa sincera e de boa-vontade, que é ignorante da fé, será “iluminada” recebendo a “luz divina” (escutando o Evangelho) e entrará na Igreja Católica de forma que ela possa ser salva.

Em termos muito próximos, pronuncia-se Santo Tomás de Aquino. Vejamos abaixo as citações.
São Tomás de Aquino, De Veritate, 14, A. 11, ad 1: Objeção: “É possível que alguém possa ser criado na floresta, ou entre lobos; um tal homem pode explicitamente saber algo a respeito da fé. São Tomás responde- É a característica da Providência Divina prover todo homem com o que seja necessário para a salvação... desde que nessa parte não haja obstáculo. No caso de um homem que procura o bem e se afasta do mal, pelo governo da razão natural, Deus tanto se lhe revelaria através de inspiração interna, o que haveria que ser acreditado, ou lhe enviaria algum pregador da fé...”
Outra confirmação: “Se um homem nasceu entre nações bárbaras, faça o que ele possa, o próprio Deus lhe mostrará o que seja necessário para a salvação, tanto pela inspiração ou lhe enviando um professor.”
(São Tomás de Aquino, Sent. II, 28, Q. 1, A. 4, ad 4).

Por fim, esta: “Se um homem não tivesse ninguém para instruí-lo, Deus lhe mostrará, a menos que ele culpavelmente deseje permanecer onde ele esteja”.
(São Tomás de Aquino, Sent. III, 25, Q. 2, A. 2, solute).

O Padre Francisco de Vitória, um famoso teólogo dominicano do século XVI resumiu o muito bem o ensinamento tradicional da Igreja Católica nesse tópico. Eis como situa a questão:

“Quando nós postulamos ignorância invencível sobre assunto do batismo ou da fé cristã, não se segue que uma pessoa possa ser salva sem o batismo ou a fé cristã. Aos aborígenes a quem nenhuma pregação da fé ou da religião cristã chegou, serão danados pelos pecados mortais ou pela idolatria, mas não pelo pecado da incredulidade. Como São Tomás diz, porém, se eles fazem o que neles repousa [em seu poder], acompanhado por uma boa vida de acordo com a lei da natureza, é consistente com a providência divina que Ele os iluminará com respeito ao nome de Cristo”.

Foi precisamente esse o ensinamento do Concílio de Trento:
"Depois da promulgação do Evangelho, não pode dar-se [a justificação do ímpio] sem o lavatório da regeneração [Cânon 5, sobre o Batismo] ou por seu desejo, conforme está escrito: "Se alguém não tiver renascido pela água e pelo Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus"( Jo. VIII, 5) ( Denzinger, 796).

Portanto, o Concílio de Trento ensinou claramente que existe o batismo de desejo.

Esse batismo de desejo, que, como dissemos, é o de uma pessoa que pratica a lei de Deus como está inscrita na natureza, não tem necessidade de ser explícito. Aliás, não poderia ser de outro modo, naturalmente, pois a pessoa em estado de ignorância invencível não pode conhecer que existe o sacramento do Batismo.

Conclui-se, pois, que uma pessoa em estado de ignorância invencível pode possuir o batismo de desejo, ainda que simplesmente implícito, e, por esse batismo de desejo, fazer parte da alma da Igreja, embora não de seu corpo visível, e, a esse título,  salvar-se. Deste modo, o dogma pelo qual a Igreja ensina que "fora da Igreja não há salvação" continua firme e válido, pois a pessoa em ignorância invencível, e que obedece à lei natural, pertence, de fato, à alma da Igreja Católica.

Por isso, o Papa Pio IX, depois de reafirmar o dogma de que "fora da Igreja não há salvação", fez notar, na Alocução Singulari Quadam, de 1854, essa afirmação  deve ser entendida como sendo que não têm salvação os que estão fora da Igreja por culpa própria.

Assim se exprime Pio IX:
"Com efeito, pela fé há de sustentar-se que fora da Igreja Apostólica Romana ninguém pode salvar-se; que esta é a única arca da salvação, que quem nela não tiver entrado, perecerá no dilúvio. Entretanto, também é preciso ter por certo que aqueles que sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela [ignorância] é invencível, não são, ante os olhos do Senhor, réus por isso de culpa alguma. Ora pois, quem será tão arrogante que seja capaz de assinalar os limites desta ignorância, conforme a razão e a variedade de povos, regiões, caracteres e de tantas outras e tão numerosas circunstâncias?" (Pio IX, Alocução Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647).

Pio IX confirmou a mesma doutrina na Encíclica Quanto Confficiamur Moerore de 10-VIII-1863, condenando tanto o liberalismo, defensor da tese de que há salvação fora da Igreja, quanto o rigorismo jansenista, que não admitia que Deus concedesse qualquer graça capaz de salvar fora da Igreja, ou que recusava o batismo de desejo.

A fim de evitar qualquer possível equívoco sobre a matéria, Pio IX reitera:
"E aqui, queridos Filhos e Veneráveis Irmãos, é preciso recordar e repreender novamente o gravíssimo erro em que se acham miseravelmente alguns católicos, ao opinar que homens que vivem no erro e alheios à verdadeira fé e à unidade da católica possam chegar à eterna salvação. O que certamente se opõe em sumo grau à doutrina católica. Coisa notória é para Nós e para Vós que aqueles que sofrem de ignorância invencível acerca de nossa santíssima religião, que cuidadosamente guardam a lei natural e seus preceitos, esculpidos por Deus nos corações de todos e que estão dispostos a obedecer a Deus e levam vida honesta e reta, podem conseguir a vida eterna, pela operação da virtude da luz divina e da graça; pois Deus, que manifestamente vê, esquadrinha e sabe a mente, ânimo, pensamentos e costumes de todos, não consente, de modo algum, conforme sua suma bondade e clemência, que ninguém seja castigado com eternos suplícios, se não é réu de culpa voluntária. Porém, bem conhecido é também o dogma católico, a saber, que ninguém pode salvar-se fora da Igreja Católica, e que os contumazes contra a autoridade e definições da mesma Igreja, e os pertinazmente divididos da unidade da mesma Igreja e do Romano Pontífice, sucessor de Pedro, 'a quem foi encomendada pelo Salvador a guarda da vinha', não podem alcançar a eterna salvação" (Pio IX, Quanto Confficiamur Moerore, Denzinger, 1677).

Ainda no século XX, durante o pontificado de Pio XII, o Santo Ofício condenou as afirmações do Padre Leonard Feeney, o qual negava a existência do batismo de desejo. Em carta ao Arcebispo de Boston, reafirmou-se tanto o dogma de que "fora da Igreja não há salvação", como a legitimidade do chamado "batismo de desejo".

Nesse mesmo documento do Santo Ofício (1949), endereçado ao Padre Feeney, pode-se ler:
"Entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixa de pregar, está contida aquela sentença infalível que nos ensina que "fora da Igreja não há salvação". Este dogma, entretanto, deve ser entendido no sentido em que a própria Igreja o entende. Nosso Senhor, de fato, não confiou a explicação das coisas contidas no depósito da fé aos julgamentos privados, mas sim ao magistério eclesiástico".
"E em primeiro lugar, a Igreja ensina que neste caso se trata de um rigorosíssimo preceito de Jesus Cristo. De fato, Ele mesmo disse explicitamente aos seus discípulos que ensinassem todos os povos a observar o que Ele havia ordenado. (cfr. Mt XXVIII, 19-20). Entre os mandamentos de Cristo, não tem menos valor aquele que nos ordena que os incorporemos, com o batismo, ao Corpo místico de Cristo, que é a Igreja, e a aderirmos a Cristo e ao seu Vigário, por meio de quem Ele mesmo governa na terra de modo visível a Igreja. Por isso, não se salvará aquele que, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, não aceitar, mesmo assim, submeter-se à Igreja ou recusar a obediência ao Pontífice Romano, Vigário de Cristo na terra.
"O Salvador, então, não só predispôs em um preceito que todos os povos deveriam aderir à Igreja, como chegou a estabelecer que a Igreja era o meio de salvação sem o qual ninguém poderia entrar no Reino da glória celeste".

"Daqueles meios para a salvação que só por instituição divina, e não por necessidade intrínseca, estão dirigidos para o fim último, Deus, na sua infinita misericórdia, quis que, em certas circunstâncias, seus efeitos, necessários para a salvação, pudessem ser obtidos também quando estes meios sejam ativados apenas pelo anseio ou pelo desejo. Isso vemos claramente enunciado no sagrado Concílio de Trento, quer em relação ao sacramento da regeneração, quer a respeito do sacramento da penitência."
"Nas devidas proporções, o mesmo deve ser dito com relação à Igreja, já que esta é um meio geral de salvação. Pois, para obter a salvação, não se exige a incorporação real (reapse), como membro, à Igreja, mas é exigida, pelo menos, a adesão a esta pelo voto e o desejo (voto et desiderio). Não é necessário que este voto seja sempre explícito, como se exige dos catecúmenos. Se o homem sofre de ignorância invencível, Deus aceita um voto implícito, assim chamado porque contido naquela boa disposição da alma com a qual o homem quer a sua vontade conforme à vontade de Deus".

Prossegue o documento: "Estas coisas são claramente ensinadas [na encíclica de Pio XII Mystici Corporis Christi] em relação ao Corpo Místico de Jesus Cristo [...] Quase no final desta encíclica [...] convidando à unidade, com o espírito cheio de amor, aqueles que não pertencem à estrutura da Igreja Católica [o Sumo Pontífice] recorda aqueles que, "por anseio ou desejo inconsciente, estão ordenados para o Corpo Místico do Redentor"; não os exclui absolutamente da salvação eterna, mas, por outro lado, afirma que eles se encontram em um estado no qual "nada pode assegurar-lhes a salvação [...], pois que são privados de muitos e grandes socorros e favores celestes que só podem ser desfrutados na Igreja católica".
"Com estas prudentes palavras, desaprova tanto aqueles que excluem da salvação eterna todos os que aderem à Igreja apenas com um voto implícito, como aqueles que defendem falsamente que os homens podem ser igualmente salvos em qualquer religião."
"E não se deve nem mesmo pensar que seja suficiente um desejo qualquer de aderir à Igreja para que o homem seja salvo. Exige-se, realmente, que o desejo mediante o qual alguém é ordenado à Igreja seja moldado pela perfeita caridade; e o voto implícito não poderá ter efeito se o homem não tiver a fé sobrenatural" (Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston, 1949. Denzinger, 3866 -3872).
Em face do supracitado, não é difícil deduzir que, na multidão dos hereges e pagãos, essas pessoas, pertencentes não ao corpo mas à alma da Igreja, são raras.

Por outro lado, nesses vários documentos do Magistério Extraordinário e Ordinário da Igreja, fica patente a superior elevação e equilíbrio com que os Papas ensinam os fiéis da Santa Igreja, evitando todos os unilateralismos e simplificações desmedidas, quer pela recusa do espírito concessivo do liberalismo, quer pela recusa do rigorismo exacerbado, característico de certa mentalidade jansenista. 

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